quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A Educação Humanista versus Educação na Era Neoliberal

Por mais ilusória que fosse sua pretensão à universalidade em uma sociedade de classes, a educação humanista, ao visar o florescimento de todas as faculdades intelectuais, morais e físicas do homem, tinha como objetivo a emancipação intelectual e, como referência ideal, um homem completo, para o qual o trabalho não era a ocupação exclusiva da vida. Na era neoliberal, ao contrário, a educação visa a formação do assalariado ou, de modo mais geral, do "ativo" cuja existência parece se reduzir à aplicação de conhecimentos operacionais no exercício de uma profissão especializada ou de uma atividade considerada socialmente útil. Não tenho como perspectiva nada além do campo das profissões e das atividades existentes, ele fecha o homem em um presente ao qual ele deve se adaptar custe o que custar, excluindo a utopia de uma libertação. Segundo a expressão muito bem colocada de André Tosel, estamos na era da escola "desemancipadora". (LAVAL, Christian. A Escola Não É Uma Empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Editora Boitempo, 2019, pág. 65).

sexta-feira, 10 de junho de 2016

PRODUTIVISMO E ALIENAÇÃO



Por: Thomaz Wood Jr. (Prof. FGV-SP)
No mês passado, este escriba participou de mesa sobre o tema em epígrafe. O evento integrou as comemorações de 50 anos da Unicamp, foi organizado por Wilson Cano e presidido por Aníbal Vercesi, professores da própria universidade. Integraram a mesa os colegas Jorge Olimpio Bento, da Universidade do Porto, em Portugal, Valdemar Sguissardi, professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos, e Luiz Carlos Wrobel, da Brunel University, na Inglaterra.
Bento dissecou as patologias com erudição, recorrendo a bons séculos de pensamento humanista. Sguissardi combinou objetividade e visão crítica em sua análise sobre o arenoso tema. Em contraponto construtivo, Wrobel fez elucidativa apresentação sobre o modelo inglês, que busca aumentar o impacto social dos investimentos em pesquisa.
O produtivismo é uma perversão da produtividade. Produtividade refere-se à capacidade de criar algo de valor a partir do uso maximizado de recursos. Uma fábrica que usa menos energia e aço para produzir mais carros é mais produtiva em comparação às suas concorrentes, gera mais lucro e polui menos.
Um hospital com melhor uso de seu corpo médico e dos leitos para atender a mais pacientes é mais produtivo comparado a outros e gera maior benefício social. Da mesma forma, uma universidade que maximiza seus recursos e cria mais conhecimento, contribui para gerar patentes e outros benefícios, é mais produtiva em relação a outros estabelecimentos do gênero.
Produtivismo é outra coisa. Ser produtivista é produzir sem se importar com a qualidade ou a finalidade do que é produzido, é acumular estoque condenado a virar sucata. Na universidade, ser produtivista é pensar na geração de conhecimento como se fosse uma ultrapassada linha de manufatura, é alienar-se da missão de gerar conhecimento, transmiti-lo e ajudar a transformá-lo em algo útil para a sociedade. Para alguns observadores, o produtivismo é doença autoimune, cria da própria comunidade acadêmica. Resposta desvirtuada a uma demanda social legítima, o produtivismo é puro jogo de cena.
Tristemente, o produtivismo viceja em nossas universidades. Muitos pesquisadores agem como capatazes de fábrica, a supervisionar doutorandos e mestrandos. Pesquisas são fatiadas em pedaços para alimentar vários artigos, é a “ciência salame”. Jovens pesquisadores são induzidos a atuar como ghost-writers para produzir artigos assinados por seus orientadores. Escreve-se cada vez mais e lê-se cada vez menos. Multiplicam-se os burocratas, desaparecem os intelectuais.
A preocupação com a produtividade científica é legítima e constitui fenômeno mundial. Nos países desenvolvidos, espera-se que os recursos destinados às universidades sejam bem geridos e retornem na forma de benefícios para a sociedade. Nos países em desenvolvimento, essa demanda ganha urgência. Entretanto, muitas universidades convivem com irresponsável complacência, usam recursos públicos para custear professores e pesquisadores de escassa contribuição ao ensino ou à ciência. 
Há duas décadas, este escriba ouviu de um gerente industrial um discurso triunfante: sua fábrica batia recordes de produção. O gerente planejava bom uso para o bônus a receber no fim do ano. Fora da fábrica, entretanto, a situação era de desalento. A área de vendas não conseguia comercializar a produção, excessiva e de qualidade inferior àquela demandada pelos clientes. O setor de logística alugava, a preço de ouro, armazéns para estocar o produto encalhado.
O departamento de compras, enquanto isso, recorria a bancos para financiar a compra de matéria-prima. Em suma, a empresa tomava emprestado dinheiro caro, para produzir a um ritmo alucinante um produto não desejado por seus clientes. Qualquer semelhança entre essa situação e a de nossas universidades pode ser mais do que simples coincidência.
Há luz no fim do túnel? Talvez. Depois de décadas de discussão, o conceito de impacto social do conhecimento começa a ganhar status de política pública. O Reino Unido configura-se como grande laboratório para as novas políticas e práticas. Seu sistema nacional de avaliação passou, há pouco tempo, a considerar o impacto social da pesquisa na avaliação das universidades e para alocação de recursos. A solução não deve ser vista como panaceia, porém duas ou três lições podem estar a caminho. 

sábado, 26 de setembro de 2015

O PARADOXO E A INSENSATEZ (Por: José Luís Fiori, no Jornal Valor Econômico)


"Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande. 
Respondi assim:
 "Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada, 
porque você está perguntando isto para mim, 
um cara que fez pós­doutorado, trabalha num lugar com ar­-condicionado, 
com vista para o Cristo Redentor. Eu não dependo em nada do Estado, 
com exceção de segurança. Nesse condomínio social, 
eu moro na cobertura. Você tem que perguntar a quem precisa do Estado".  
(Luiz G. Schymura, "Não foi por decisão de Dilma que o gasto cresceu", Valor, 07/08/2015)
Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da "crise brasileira". De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da República eleita por 54,5 milhões de brasileiros, há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático, e o que pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral. 
Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a "crise política", para depois poder resolver a "crise econômica"; e uma vez "resolvida" a crise política, todos propõem a mesma coisa, em síntese: "menos Estado e menos política". 
Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá­-las ou comprová-­las, como é o caso de sua crença econômica no "individualismo eficiente", na superioridade dos "mercados desregulados", na existência de mercados "competitivos globais", e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica.
É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o "limbo" entender que não existe vida econômica sem política e sem Estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas "crises brasileiras" são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo Estado. 
Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a "aritmética econômica" e o "voluntarismo político". Existem várias "aritméticas econômicas" para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que a economia é também uma estratégia de luta pelo poder do Estado, que pode estar mais voltado para o "pessoal da cobertura", mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas.
Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?
O francês Pierre Rosanvallon dá uma pista, ao fazer uma anátomo-­patologia lógica do liberalismo da "escola fisiocrática" francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático-­liberal de redução radical da politica à economia e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e por que este projeto de despolitização radical da economia e do Estado leva à necessidade implacável de um "tirano" ou "déspota esclarecido" que entenda a natureza nefasta da política e do Estado, se mantenha "neutro", e promova a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da "grande utopia liberal", dos mercados livres e desregulados. 
Foi o que Rosanvallon chamou de "paradoxo fisiocrata", ou seja: a defesa da necessidade de um "tirano liberal", que "adormecesse" as paixões e os interesses políticos, e se possível, os eliminasse.
No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal foi a da ditadura do Sr. Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano Paul Samuelson de "fascismo de mercado". Pinochet foi ­ por excelência ­ a figura do "tirano" sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase troglodita, dedicou­-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade politica dissidente, e entregou o governo de fato a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas.
No Brasil não faltam ­ neste momento ­ os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor e dispostos a levar até as últimas consequências o seu projeto de "redução radical do Estado", e se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade de sua "aritmética econômica".
Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência, e no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil.
Porque não é necessário dizer que tanto os líderes golpistas quanto seus economistas de plantão olham para o mundo como se ele fosse uma "enorme cobertura", segundo a tipologia sugerida na epígrafe, pelo Sr. Luiz Schymura. Um raro economista liberal, em entender a natureza contraditória dos mercados, e natureza democrática do atual déficit público brasileiro.
1) P. Rosanvallon, Le liberalisme économique. Histoire de l'idée de marché, Editions Seuil, Paris, 1988
(José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da UFRJ, é autor do livro "História, estratégia e desenvolvimento" (2014) da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ) 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

CONFLITO DE INTERESSES

"Enfim, se o capital está empregado em juros, o trabalho está sendo desempregado pelos juros, então, por que não é também atribuída ao Copom a missão social de combater tanto a inflação, quanto o desemprego, além de evitar crise cambial provocada por déficit no balanço de pagamentos?" (Fernando Nogueira da Costa, Conflito de Interesses, Debate Brasil, quinta-feira, 10/09/2015)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O ESTADO POR TRÁS DO iPhone

Em seu conhecido discurso na Universidade de Stanford, proferido em 12 de junho de 2005, Steve Jobs, então CEO da Apple Computer e da Pixar Animation Studios, incentivou os formandos a serem inovadores, "indo atrás do que vocês amam", e "continuando loucos". (...) Embora o discurso seja inspirador e apesar de Jobs ter sido corretamente chamado de "gênio" pelos produtos visionários que concebeu e comercializou, essa história cria um mito em relação à origem do sucesso da Apple. A genialidade individual, a atenção ao design, o gosto pela jogo e a loucura foram sem dúvida características importantes. Mas sem o maciço investimento público por trás das revoluções da informática e da internet, esses atributos poderiam ter levado apenas à invenção de um novo brinquedo - e não a produtos revolucionários como o iPad e o iPhone, que mudaram a maneira como as pessoas trabalham e se comunicam. (...) a genialidade e o "espírito louco" de Steve Jobs só produziram sucesso e lucros maciços porque a Apple conseguiu surfar na onda de investimentos enormes feitos pelo Estado em tecnologias "revolucionárias" que deram sustentação ao iPhone e ao iPad: a internet, o GPS, telas sensíveis ao toque [touch-screen] e tecnologias de comunicação. Sem essas tecnologias financiadas com recursos públicos, não teria havido nenhuma onda para surfar tolamente. (...) porque o Estado não é recompensado pelos investimentos diretos em pesquisa básica e aplicada que levam a tecnologias bem-sucedidas e servem de base para produtos comerciais revolucionários como o iPod, o iPhone e o iPad? (MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor, págs. 126-127)

sábado, 17 de janeiro de 2015

O ESTADO NÃO TEM DIREITO DE MATAR

Não é porque Marcos Archer Moreira é brasileiro que eu gostaria que o governo da Indonésia lhe concedesse clemência. Torço por essa possibilidade – mais remota, a cada minuto que passa – porque sou radicalmente contra a pena de morte. Em toda e qualquer circunstância.
Marcos fez uma besteira das grossas. Ingenuamente, acreditou que poderia camuflar 13 quilos de cocaína na sua asa-delta. É obviamente um mané. Nem por isso merecia o castigo de uma punição extrema.
Fico imaginando o que deve ter sido um julgamento desses. Sete juízes – adivinho – decidindo, com seus trajes ridículos e sua retórica agressiva, o destino de um ser humano.
Insisto: o Estado, representado por seus fantoches, não tem o direito de matar. Torna-se um facínora igual aquele que pretende punir. Podem argumentar: mas a droga pode ser mortífera, e o Estado tem de ser rigoroso no seu controle. Ainda assim, nada justifica a brutalidade de um fuzilamento. É um recurso arcaico, autoritário, anti-civilizatório. Reparem na lista dos países que insistem na pena capital: a Arábia Saudita, o Irã, o Vietnã, o Paquistão e, claro, os Estados Unidos, um país que parece viver no passado fantasioso do faroeste bandido vs. mocinho.
A América é hoje um país da violência lícita e gratuita. A brutalidade virou espetáculo. Não me surpreende que haja plateia risonha e excitada para, no Texas, em Utah, no Nebraska, assistir prisioneiros estrebuchando ao receberem injeções letais. 
Só um país mata mais do que os Estados Unidos: a China. Também na China o método de execução sumária é o fuzilamento. Não é algo de que se orgulhar.(Nirlando Beirão, em seu blog no R7).

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Patrimonialismo capitalista desvelado na fiscalidade

Entre 1995 e 2011, o Estado brasileiro transferiu para os detentores da dívida pública, sob a forma de pagamento de juros reais, um total acumulado de 109,8% do PIB. Se avançarmos até 2014, essa transferência de renda e riqueza chega a 125% do PIB. Isso significa atirar ao colo dos detentores de riqueza financeira, ao longo de 19 anos, um PIB anual, mais um quarto. É pelo menos curioso que os idealizadores do “impostômetro” não tenham pensado na criação do “jurômetro”.
É possível alinhavar algumas cifras para apontar os perdedores e ganhadores do jogo. Para tanto, vou recorrer ao excelente estudo da professora Lena Lavinas,  A Long Way from Tax Justice: The brazilian case.
Nesse caso, como em outros, há brasileiros e brasileiros. Em 2011, a carga tributária bruta chegou a 35,31% do PIB. No Brasil os impostos indiretos, como o IPI e o ICMS, representam 49,22% do total da carga tributária. Como se sabe, esses impostos incidem sobre os gastos da população na aquisição de bens e serviços, independentemente do nível de renda. Pobres e ricos pagam a mesma alíquota para comprar o fogão e a geladeira, mas o Leão “democraticamente” devora uma fração maior das rendas menores. Os chamados encargos sociais representavam 25,76% da carga total e o ônus estava, então, distribuído entre empregados e empregadores.
Já o Imposto de Renda contribui com parcos 19,02% para a formação da carga total, enquanto os impostos sobre o patrimônio são desprezíveis, sempre empenhados a beneficiar a riqueza imobiliária e financeira dos mais ricos. As estimativas sobre a distribuição da carga tributária bruta por nível de renda mostram que ,enquanto os que ganham até dois salários mínimos recolhem ao Tesouro 53,9% da renda, os que ganham acima de 30 mínimos contribuem com 29,0%. “A quem tem, mais se lhe dará, e terá em abundância; mas, ao que quase não tem, até o que tem lhe será tirado.” Feliz ajuste fiscal.(Belluzzo, Carta Capital, qua, 14/01/2015)