sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

SOBRE O CAPITALISMO

“O capitalismo cria a ilusão de que as oportunidades são iguais para todos, a ilusão de que triunfam os melhores, os mais trabalhadores, os mais diligentes, os mais ‘econômicos’. Mas, com a mercantilização da sociedade, cada um vale o que o mercado diz que vale. Não há nenhuma consideração pelas virtudes, que não sejam as ‘virtudes’ exigidas pela concorrência: a ambição pela riqueza e a capacidade de transformar tudo, homens e coisas, em objeto do cálculo em proveito próprio. No entanto, a situação de partida é sempre desigual, porque o próprio capitalismo, a própria concorrência, entre empresas e entre homens, recria permanentemente assimetrias entre os homens e as empresas.” (MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998, páginas 581 a 582.)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

SOBRE A RACIONALIDADE NA TEORIA ECONÔMICA

“A racionalidade individual é um pressuposto metafísico da direita econômica, necessário para apoiar a “construção” do mercado como um servomecanismo capaz de conciliar os planos individuais e egoístas dos agentes. A metafísica oculta uma “ontologia do econômico” que postula uma certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e das conexões da sociedade capitalista. Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé a Sexta-Feira.” (Belluzzo: especial Caros Amigos, n. 26, dez de 2005, p. 08)

sábado, 7 de fevereiro de 2009

AFORISMO 303

AFORISMO DE FERNANDO PESSOA:
303
O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, à vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção – a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda acção é, por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.
Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte – ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou cima.
O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração da acção com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.
Todo o homem de acção é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de acção por nunca estar mal disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiário da acção; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de homens. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir.
O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. “Tenho pena do tipo”, disse-me ele. “Vai ficar na miséria”. Depois, acendendo o charuto, acrescentou: “Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim” – entendendo-se qualquer esmola – “eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos”.
O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de acção. O que perdeu o lance neste jogo pode, de facto, pois o patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola dele no futuro.
Como o patrão Vasques são todos os homens de acção – chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa e frágil, é não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que a pena de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem às peças de xadrez até que as guarde o Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se sempre contra si mesmo.
(PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Cia das Letras, 2006, páginas 292 a 294.)